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José de Anchieta justificou
matança promovida por Mem de Sá |
O
Vaticano abriu exceção para o padre José de Anchieta (1534-1597), tornando-o
santo, embora não haja comprovação de que ele tenha feito pelo menos dois
milagres.
Certamente pelo fato de o Brasil, o maior país católico do
mundo, ter até então só dois santos, o Vaticano aceitou a alegação da CNBB
(Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros) de que Anchieta já tem fama de
santo por causa de sua “vida exemplar”.
A Igreja Católica, obviamente,
pode declarar “santo” quem quiser, trata-se de uma questão interna dessa
religião, mas é preciso estar atento para que a interpretação católica não
contamine a perspectiva histórica, rejeitando, por exemplo, essa lorota de que
Anchieta teve “vida exemplar”.
O espanhol Anchieta e um dos fundadores de
São Paulo foi um erudito. Versado em idiomas, incluindo o tupi, ele escreveu o
livro “A Arte da Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”, o primeiro
no gênero do país.
A erudição de Anchieta, contudo, não o elevava para
fora do seu tempo, para um futuro no qual os direitos humanos viriam a ser
respeitado.
Anchieta nunca criticou a matança de índios pelos
colonizadores, mas ressaltou em um poema o quanto foram “cruéis” os tupinambás
que atacavam os portugueses por não aceitarem a dominação
estrangeira.
Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) teve a grandeza que
faltou ao “exemplar” Anchieta. O frade dominicano e bispo de Chiapas (México) se
notabilizou como defensor dos índios, denunciado na Europa os massacres dos
quais eles eram vítimas.
O poema onde Anchieta revela que retrato fazia
dos índios se chama “Os Feitos de Mem de Sá” [administrador colonial do Brasil].
Com 3.058 versos decassílabos divididos em quatro cantos (ou livros), o poema
foi escrito em latim para um público português e europeu.
Em um dos
versos o padre afirmou que os índios causaram muitas ruínas aos portugueses,
como se estes não fossem os invasores das terras daqueles.
Diz o verso:
Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te
contemplou! quanto bem trarás a seus povos
abandonados! com que terror fugirá
a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou
nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!A professora Ivânia dos
Santos Neves, do Programa de Mestrado de Comunicação e Cultura da Universidade
da Amazônia, escreveu um estudo mostrando que Anchieta e demais sacerdotes em
missão no Brasil fechavam os olhos para a matança dos nativos porque equiparavam
os índios aos negros, que, para a Igreja, não tinham alma.
“Os
religiosos se valeram das determinações papais que haviam resolvido a questão da
igualdade social em relação às sociedades africanas, estas determinações
estabeleciam que o “negro” não era considerado gente para a Igreja Católica”,
diz o estudo.
Isso explica, segundo a professora, o uso em textos
jesuíticos do século XVI da palavra “negro” para se referir a
“índio”.
Ivânia Neves destacou que, no poema de enaltecimento a Mem de
Sá, Anchieta se inspirou nas batalhas entre portugueses e os Tupinambá, que
foram à luta em uma tentativa de garantir seu território.
“Eles [os
índios] lutaram para não se submeter, mas Anchieta condena esta luta”, escreveu
a professora.
Em outro verso, Anchieta disse:
Vês como gentes
cruéis em hordas imensas preparam
aos cristãos batalhas ferozes. De morte
humilhante
ameaçam agora a cabeça dos pobres colonos
quais tigre cruéis
em redor da preia lanhada
sorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.
No livro III, Anchieta chegou a admitir que Mem de Sá fez uma
“guerra cruel de extermínio”, mas o padre a justificou porque, entre outras
coisas, os índios tinham o “hábito horrendo” de comer carne humana.
Eis o
verso:
“O Governador ouviu com bondade essas palavras
e respondeu: “Se
vos fiz guerra cruel de extermínio,
devastando os campos e lançando em vossas
moradas
o incêndio voraz, levou-me a isso vossa audácia somente.
Já agora,
esquecidos os ódios, vos concedemos contentes
a aliança e a paz que quereis e
sentimos vossa desgraça.
Porém, deveis vós observar as leis que vos
dito.”
Manda então que refreiem suas rixas contínuas
que expulsem do peito
a crueldade e o hábito horrendo
de saciarem o ventre, à maneira de feras
raivosas,
com carnes humanas. Também lhes ordena que guardem
os
mandamentos do Pai celeste e a lei natural
e ergam igrejas ao eterno Senhor das alturas
em seu torrão natal; aí
serão instruídos
na lei divina e de vontade abraçarão com os filhos
a fé
de Cristo, porta única do caminho do céu,
Além disso, tudo quanto roubaram
dos Cristãos às ocultas
ou por assalto, em tantos anos, os próprios
escravos
mortos ou devorados, tudo pagarão e mais os tributos.”
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Para José Anchieta,
índios mereciam morrer porque comiam carne
humana |
Para Anchieta, os índios que
escaparam do extermínio e se converteram ao cristianismo se tornaram puros.
No livro II, ele escreveu:
Assim se expulsou a paixão de comer
carne humana,
a sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
e a raiz
primeira e causa de todos os males,
a obsessão de matar inimigos e tomar-lhes
os nomes,
para glória e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem
agora a ser mansos e da mancha do crime
afastam as mãos os que há pouco no
sangue inimigo
tripudiavam, esmagando nos dentes membros humanos.
Há pouco
a febre do impuro lhes devora as entranhas:
imersos no lodaçal, aí rebolavam
o fétido corpo,
reso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora
escolhem uma, companheira fiel e eterna,
vinculada pelo laço do matrimônio
sagrado
que lhe guarda sem mancha o pudor prometido. Por isso,
Anchieta virou santo e o apóstolo do Brasil.